Parte VIII (Final) - Maria do Rosário
Et Dieu...
Crea La Femme - E Deus Criou a Mulher, com Brigitte Bardot, um filme de Roger
Vadim, foi finalmente anunciado pelas rádios da cidade. Toda cidade que viu o trailer
queria assistir o filme para ver BB em cenas calientes. Hans e seus colegas
também se aglomeraram na porta do Cinema Madrid esperando um descuido do Juiz
de Menores para poderem entrar, conforme combinado com o porteiro. O porteiro deu mil desculpas. Não seria possível.
A vigilância estava intensa, e até o dono do cinema foi pra lá para evitar
descuidos e transgressões. Mas que ninguém ficasse chateado. O projetista tinha
cortado várias cenas do filme, que já chegou ao Cine Madrid cortado, e iria
vender o cromo montado em monóculos que podia ser visto contra alguma claridade.
A sociedade permitia quase tudo aos menores, principalmente a violência. Toda criança
podia ter revólveres, metralhadoras, tanques de guerra em miniatura etc. Podia
até brincar de bangue-bangue usando espoletas em tiras que exalavam cheiro de
pólvora a cada disparo. Podia matar pássaros com badogue. Podia ver no cinema
índios e bandidos morrendo à vontade, índios principalmente. Podia assistir
filmes de terror, quaisquer que fossem, desde que não tivessem sexo, monstros
não tem sexo. Podia maltratar animais, negros, pederastas, bêbados, mendigos,
loucos, deficientes. Podia fazer guerras entre bairros usando espadas feitas de
madeiras e até usar garruchas com chumbos de verdade. Podia caçar passarinhos e
maltratar sapos, calangos, lagartixas. Era tudo permitido, mas a nudez não.
Foi aí que Hans e os amigos, por
sugestão destes, resolveram visitar Maria do Rosário. Lá não havia Juiz de
Menores, ou talvez estivesse lá, mas disfarçado de cliente. Qual era a
diferença então entre sexo e tudo mais? O Juiz nunca disse e nem escreveu sobre
isso. Era um dogma aceito por todos.
Maria do Rosário era a casa de
prostitutas mais distinta da cidade. Diferente da prostituição que ficava em
outras duas ruas da cidade, até mesmo no centro, espalhada por diversas casas e
com diversas doenças, Maria era uma espécie de shopping center do sexo, onde se
concentravam as meninas mais bonitas e mais caras, vindas de outros locais para
não ficarem manjadas, embora sempre acabassem manjadas. Ficava um pouco
distante do centro e no seu interior uma iluminação escassa, chegada para o
neon azul, dava o clima, onde não se podia perceber defeitos nas pessoas, como
é fácil fazê-lo à luz do dia. As meninas costumavam convidar logo o cliente para beber
algum drinque, gastar o que tivesse e depois se o quisesse, se ainda tivesse
algum dinheiro e apetite, podia também fazer sexo.
Os outros dois puteiros, não. Para lá
ia a ralé, a violência, as mulheres que convidavam os transeuntes a entrar.
Qualquer dinheiro era dinheiro e tudo pagava. Havia muitas casas. Um destes
puteiros tinha o sugestivo nome de Minadouro. Lá, aquele empregado, o Cid,
tinha pegado cancro mole, cancro duro, cavalo de crista, blenorragia, tudo
tratado com penicilina benzatina ou terramicina, também conhecida como tetrex, sempre
à custa de muita dor, ínguas inguinais, febre, cauterizações e um reforço com
bituelve. O outro, já decadente e em processo de desativação, chamava-se de Rua
do Meio, e estava tão dentro do centro que somente casas isoladas permaneciam habitadas
com prostitutas. Era lá que investigador Bandeira costumava ficar trocando
figurinhas com os ladrões que ele conhecia por nome e feição e onde mapeava
cada zona em que cada um atuava. Todos os ladrões eram amigos do investigador e
vice-versa. Maior preocupação?
Maria do Rosário não, era um lugar
diferente. Era uma casa só, aconchegante, não era uma rua. Tinha muitos
quartos. Muitas meninas bonitas na penumbra, onde se tornavam ainda mais
bonitas e meninas qualquer que fosse a idade que tivessem.
Antes de chegarem à casa de Maria do
Rosário, o Hamilton, o maior dentre eles, sugeriu que passassem na casa de um veado e pai
de santo, de nome José, que ficava a meio
caminho. O homossexual aparentava mais
de quarenta anos, o que para a época já era considerado um veado velho e
decadente, conquanto mantivesse uma certa postura e altivez. Pararam lá, o
Hamilton já devia ser freguês, pois o dono da casa logo se apressou em fritar
uns tiragostos de carne seca e a oferecer alguns drinques a todos os amigos
dele sem cobrar nada. Beberam e comeram,
a bebida servia para tirar a timidez, embora pudesse levar também a ereção, mas
ninguém ia transar em Maria do Rosário, apenas conhecer o local. Era uma boa
caminhada até Maria, que ficavam um pouco distante para quem ia a pé, uma
visita de reconhecimento para alguns do grupo.
Hans não entendia porque a nudez e o sexo
era tão demonizados e a violência não, devia ser interferência da igreja,
afinal os padres diziam que eram castos e as mulheres tinham de ir ao casamento
embaladas e seladas, vestidas de branco, sendo o divórcio inexistente e a
separação uma provação na vida dos guris de pais separados. A igreja punia como
podia. Só sabia punir. Mesmo que às escuras tudo se passasse como se devesse
passar, às claras era tudo puro, que
fosse.
O cinema ditava moda e até estilos na
cidade. Quando o faroeste italiano finalmente começou a sobrepujar o cowboy
americano, surgiu Giuliano Gemma, galã que quando dava socos ou tiros tinha o
poder de arremessar suas vítimas pelas portas e janelas à grande distância, a
ponto de um colega ter se levantado da
poltrona do cinema e gritado: culhuda, que significa mentira grossa. Giuliano
era implacável com os bandidos. Bandidos não tomavam sopa com o Giuliano, ele
tinha prazer em surrá-los ou matá-los, como nós até hoje temos, graças ou não
ao Giuliano. Além disso, cada soco era acompanhado de um som amplificado para
mostrar a potência do golpe e da emoção. Giuliano tinha estrelado um filme muito
assistido chamado O Dólar Furado, e passou a ser moda na cidade se furar uma
moeda de cobre e se usá-la como pingente como se ali fosse o dólar do Giuliano.
A curiosidade sobre o sexo feminino
tomava conta da mente de Hans. De um lado, ele via o sexo de garotas, que era
apenas um troço partido no meio e mais nada se podia ver frontalmente. Do outro,
o sexo das suas vizinhas, onde o partido nem mesmo mais comparecia à vista e
era tudo cabelo, mata densa e perigosa. O sexo dos meninos, por outro lado, era
exteriorizado, crescia, ficava exposto a quem quisesse ver. Como no dia em que
um colega de Hans foi chamado ao quadro-negro pela professora e hesitou a se
levantar, pois estava excitado e todo mundo iria perceber. Teve de inventar mil
estórias e pedir para o bicho descer, mas não teve jeito, o bicho não obedeceu.
Quando foi à lousa, meio desajeitado, tentando esconder o volume, logo notado
pela professora, que andava necessitada, disse que não tinha giz para escrever.
A professora não perdeu o rebolado e lhe disse " E esse giz imenso e duro
que você traz aí no bolso...". A sala... Ora a sala... Devia haver reza
pra pau subir e descer, mas não há.
Hans um dia viu uma prima tomando banho
nua, tinha menos idade que ele e era
meio loura; ficou olhando aquele sexo partido, interiorizado, ficou com o coração
da mesma maneira. Era o sexo dos anjos, liso como a bunda de um santo, sem pelos, aquela coisa inconsútil, embora
rachada, quem se atreveria a costurá-la? Onde estava então o sexo feminino?
Embutido? Entre as pernas? Porque no menino o sexo crescia e na menina o sexo
se embutia? matutava Hans. Ou será introduzia? À exceção dos peitinhos e do
bumbum, que nas meninas cresciam mais do que nos meninos, todo o resto do sexo
se recolhia. E tinha também aquela
armadura, o sutiã, para esconder e agarrar os desgarrados. O sutiã não é algo
natural, mas se assemelha a um cinto de castidade para os peitos. No interior
se dizia que o homem nasce com duas cabeças e por isso pensa mais e a mulher
com duas bocas e por isso fala mais!
A mulher é o mistério, o homem é o
detetive. Permanecendo assim o mistério estará sempre se renovando. Quando o
mistério acaba, acaba a curiosidade, resta a realidade, a dura realidade que
amolece os corpos mais renitentes.
Hans queria para si o mistério eterno.
Algo que nunca se revelasse ou que se revelasse de maneira faltante, parcial, como no cinema, como no fim de um filme que
deixa a dúvida na cabeça do espectador. Será que eles casaram? Será que foram
felizes? A vida é mistério e somente os tolos que o preservam conseguem ser
felizes. Cientistas não são felizes. Detetives também não ficam felizes depois
de encontrarem a solução de um mistério, procuram logo outro, e mais outro. O
mistério existe como tentação, como motivo para existir, a perda do mistério é
perda da inocência e da razão para viver com inocência.
Quando a pequenina Antonieta Correia
entrava no auditório da rádio e dizia " Ouvintes de casa, distinto
auditório, bom diiia! Vou cantar para
vocês essa linda canção, de Dolores Duran, intitulada, Meu Mundo Caiu",
ali estava o mistério, o glamour, o filme; mas quando Antonieta Correia era apenas
a mulatinha de cabelos pixaim, transitando pela rua com seu nariz grosso, suas
pernas finas, sua baixa estatura, ali não havia nenhum mistério, mas a pessoa
comum, que sentia dores, cólicas, sofria, gripava, tossia, dava pum e adoecia.
A vida é mistério, sem o qual a realidade não se sustenta.
Hans sempre idealizou todas as formas
que não conhecia materialmente, como todo mundo deve fazer. Imaginava que um
ladrão fosse alguém de cara enorme, redonda, cara de lua, com a boca grande,
cheia de dentes, tipo os ladrões dos desenhos de quadrinho de Walt Disney. Na
primeira vez que viu um ladrão real, magro, baixo, mulato, demasiadamente
humano, se decepcionou. Nesse mesmo dia se decepcionou também com a polícia, que
já conhecia, pois viu um detetive conversando com um ladrão como se fossem
amigos. Como pode? A substituição do imaginário pelo real é o grande drama na
psique humana. Nem sempre o real vale a pena.
Após saírem da casa do homossexual, os
garotos, era um grupo de quatro, se dirigiram à casa de Maria do Rosário, que ficava devidamente guarnecida por um leão
de chácara. Foram todos entrando em fila,
espiando cada coisa, cada canto, cada momento, a decoração, a iluminação, as
meninas. Tudo para Hans parecia novo, mas não conseguia sentir emoção em nada
do que via, não entrou no clima, era tudo muito artificial, todo mundo fingia,
só Hans não sabia fingir, ainda, acho que nunca aprendeu. Hamilton foi logo
agarrando uma garota da casa; aparentemente bonita e muito mais velha do que
ele, embora fossem da mesma altura,
tinha cabelos azul-castanhos e
era afetadíssima; foi beijando-a pelo pescoço, passando as mãos pelos seios,
enquanto ela fingia que se derretia e que ele era o macho que ela precisava no
momento. Incitou Hans que fizesse o mesmo. Hans no entanto ficava entre a
realidade e o sonho que não conseguia captar como nas telas do cinema com
trilha musical e muito romantismo. Como iria abraçar e beijar uma mulher que
não conhecia, que via como vulto na penumbra, que não usava Fleur de Rocaille,
que já era adulta e com quem nunca conversara antes; fora que passava de mão em
mão e não era de ninguém. Lembrou-se que
de uma certa estivera, por motivo de força maior, numa casa semelhante a esta,
embora muito inferior em qualidade, em um outro interior que não aquele, junto com
um amigo seu, pela manhã, e as meninas
estavam todas derrubadas no sofá, ressentindo-se da noite não dormida e
curtindo a ressaca do arrependimento. Ou de quando, numa micareta, entrara com
um primo mais velho numa outra casa bem mais deprimente, apesar do clima de
carnaval, e imaginou se seria isso que o esperava no futuro, pois não era isso que
desejava. Definitivamente, prostitutas não eram seu ideal de mulher.
"Você não pode começar sua vida
com um ideal ruim", pensou, "ou senão seu sonho estará perdido",
"mas também você não pode fugir do real disponível, simplesmente porque não
achou um imaginário à altura, e permanecer insatisfeito para o resto da vida",
completou sem pensar nem dizer. Esse é o balanço da vida, sempre pendendo para
o ruim na relação de troca.
- Chega aqui benzinho, vem cá me dar
um beijo, me fazer uma carinho, disse a prostituta para um Hans acanhando, que
se limitava a olhar desconfiado para o ambiente.
- Mas você não é a Brigitte Bardot,
disse Hans para a moça.
- Que chique! E você é o Giuliano
Gemma?
- Sou sim, e tirando uma moeda do
bolso disse para a moça, olha aqui o dólar furado.
- Humm! Pois saiba que eu também sou a Claudia
Cardinale.
-
Desejo também mata! disse para ela Hans enquanto se dirigia à porta de
saída.