terça-feira, 11 de setembro de 2012

As Almas No Quarador - Final - Maria do Rosário.



     
                                               Parte VIII (Final) - Maria do Rosário

         Et Dieu... Crea La Femme - E Deus Criou a Mulher, com Brigitte Bardot, um filme de Roger Vadim, foi finalmente anunciado pelas rádios da cidade. Toda cidade que viu o trailer queria assistir o filme para ver BB em cenas calientes. Hans e seus colegas também se aglomeraram na porta do Cinema Madrid esperando um descuido do Juiz de Menores para poderem entrar, conforme combinado com o porteiro.  O porteiro deu mil desculpas. Não seria possível. A vigilância estava intensa, e até o dono do cinema foi pra lá para evitar descuidos e transgressões. Mas que ninguém ficasse chateado. O projetista tinha cortado várias cenas do filme, que já chegou ao Cine Madrid cortado, e iria vender o cromo montado em monóculos que podia ser visto contra alguma claridade. A sociedade permitia quase tudo aos menores, principalmente a violência. Toda criança podia ter revólveres, metralhadoras, tanques de guerra em miniatura etc. Podia até brincar de bangue-bangue usando espoletas em tiras que exalavam cheiro de pólvora a cada disparo. Podia matar pássaros com badogue. Podia ver no cinema índios e bandidos morrendo à vontade, índios principalmente. Podia assistir filmes de terror, quaisquer que fossem, desde que não tivessem sexo, monstros não tem sexo. Podia maltratar animais, negros, pederastas, bêbados, mendigos, loucos, deficientes. Podia fazer guerras entre bairros usando espadas feitas de madeiras e até usar garruchas com chumbos de verdade. Podia caçar passarinhos e maltratar sapos, calangos, lagartixas. Era tudo permitido, mas a nudez não.
        Foi aí que Hans e os amigos, por sugestão destes, resolveram visitar Maria do Rosário. Lá não havia Juiz de Menores, ou talvez estivesse lá, mas disfarçado de cliente. Qual era a diferença então entre sexo e tudo mais? O Juiz nunca disse e nem escreveu sobre isso. Era um dogma aceito por todos.
        Maria do Rosário era a casa de prostitutas mais distinta da cidade. Diferente da prostituição que ficava em outras duas ruas da cidade, até mesmo no centro, espalhada por diversas casas e com diversas doenças, Maria era uma espécie de shopping center do sexo, onde se concentravam as meninas mais bonitas e mais caras, vindas de outros locais para não ficarem manjadas, embora sempre acabassem manjadas. Ficava um pouco distante do centro e no seu interior uma iluminação escassa, chegada para o neon azul, dava o clima, onde não se podia perceber defeitos nas pessoas, como é fácil fazê-lo à luz do dia. As meninas  costumavam convidar logo o cliente para beber algum drinque, gastar o que tivesse e depois se o quisesse, se ainda tivesse algum dinheiro e apetite, podia também fazer sexo.
          Os outros dois puteiros, não. Para lá ia a ralé, a violência, as mulheres que convidavam os transeuntes a entrar. Qualquer dinheiro era dinheiro e tudo pagava. Havia muitas casas. Um destes puteiros tinha o sugestivo nome de Minadouro. Lá, aquele empregado, o Cid, tinha pegado cancro mole, cancro duro, cavalo de crista, blenorragia, tudo tratado com penicilina benzatina ou terramicina, também conhecida como tetrex, sempre à custa de muita dor, ínguas inguinais, febre, cauterizações e um reforço com bituelve. O outro, já decadente e em processo de desativação, chamava-se de Rua do Meio, e estava tão dentro do centro que somente casas isoladas permaneciam habitadas com prostitutas. Era lá que investigador Bandeira costumava ficar trocando figurinhas com os ladrões que ele conhecia por nome e feição e onde mapeava cada zona em que cada um atuava. Todos os ladrões eram amigos do investigador e vice-versa. Maior preocupação?
         Maria do Rosário não, era um lugar diferente. Era uma casa só, aconchegante, não era uma rua. Tinha muitos quartos. Muitas meninas bonitas na penumbra, onde se tornavam ainda mais bonitas e meninas qualquer que fosse a idade que tivessem.
         Antes de chegarem à casa de Maria do Rosário, o Hamilton, o maior dentre eles,  sugeriu que passassem na casa de um veado e pai de santo, de nome José,  que ficava a meio caminho.  O homossexual aparentava mais de quarenta anos, o que para a época já era considerado um veado velho e decadente, conquanto mantivesse uma certa postura e altivez. Pararam lá, o Hamilton já devia ser freguês, pois o dono da casa logo se apressou em fritar uns tiragostos de carne seca e a oferecer alguns drinques a todos os amigos dele sem cobrar nada.  Beberam e comeram, a bebida servia para tirar a timidez, embora pudesse levar também a ereção, mas ninguém ia transar em Maria do Rosário, apenas conhecer o local. Era uma boa caminhada até Maria, que ficavam um pouco distante para quem ia a pé, uma visita de reconhecimento para alguns do grupo.
          Hans não entendia porque a nudez e o sexo era tão demonizados e a violência não, devia ser interferência da igreja, afinal os padres diziam que eram castos e as mulheres tinham de ir ao casamento embaladas e seladas, vestidas de branco, sendo o divórcio inexistente e a separação uma provação na vida dos guris de pais separados. A igreja punia como podia. Só sabia punir. Mesmo que às escuras tudo se passasse como se devesse passar,  às claras era tudo puro, que fosse.
         O cinema ditava moda e até estilos na cidade. Quando o faroeste italiano finalmente começou a sobrepujar o cowboy americano, surgiu Giuliano Gemma, galã que quando dava socos ou tiros tinha o poder de arremessar suas vítimas pelas portas e janelas à grande distância, a ponto de um colega ter se  levantado da poltrona do cinema e gritado: culhuda, que significa mentira grossa. Giuliano era implacável com os bandidos. Bandidos não tomavam sopa com o Giuliano, ele tinha prazer em surrá-los ou matá-los, como nós até hoje temos, graças ou não ao Giuliano. Além disso, cada soco era acompanhado de um som amplificado para mostrar a potência do golpe e da emoção. Giuliano tinha estrelado um filme muito assistido chamado O Dólar Furado, e passou a ser moda na cidade se furar uma moeda de cobre e se usá-la como pingente como se ali fosse o dólar do Giuliano.
        A curiosidade sobre o sexo feminino tomava conta da mente de Hans. De um lado, ele via o sexo de garotas, que era apenas um troço partido no meio e mais nada se podia ver frontalmente. Do outro, o sexo das suas vizinhas, onde o partido nem mesmo mais comparecia à vista e era tudo cabelo, mata densa e perigosa. O sexo dos meninos, por outro lado, era exteriorizado, crescia, ficava exposto a quem quisesse ver. Como no dia em que um colega de Hans foi chamado ao quadro-negro pela professora e hesitou a se levantar, pois estava excitado e todo mundo iria perceber. Teve de inventar mil estórias e pedir para o bicho descer, mas não teve jeito, o bicho não obedeceu. Quando foi à lousa, meio desajeitado, tentando esconder o volume, logo notado pela professora, que andava necessitada, disse que não tinha giz para escrever. A professora não perdeu o rebolado e lhe disse " E esse giz imenso e duro que você traz aí no bolso...". A sala... Ora a sala... Devia haver reza pra pau subir e descer, mas não há.
        Hans um dia viu uma prima tomando banho nua, tinha  menos idade que ele e era meio loura; ficou olhando aquele sexo partido, interiorizado, ficou com o coração da mesma maneira. Era o sexo dos anjos, liso como a bunda de um santo,  sem pelos, aquela coisa inconsútil, embora rachada, quem se atreveria a costurá-la? Onde estava então o sexo feminino? Embutido? Entre as pernas? Porque no menino o sexo crescia e na menina o sexo se embutia? matutava Hans. Ou será introduzia? À exceção dos peitinhos e do bumbum, que nas meninas cresciam mais do que nos meninos, todo o resto do sexo se recolhia.  E tinha também aquela armadura, o sutiã, para esconder e agarrar os desgarrados. O sutiã não é algo natural, mas se assemelha a um cinto de castidade para os peitos. No interior se dizia que o homem nasce com duas cabeças e por isso pensa mais e a mulher com duas bocas e por isso fala mais!
        A mulher é o mistério, o homem é o detetive. Permanecendo assim o mistério estará sempre se renovando. Quando o mistério acaba, acaba a curiosidade, resta a realidade, a dura realidade que amolece os corpos mais renitentes.
        Hans queria para si o mistério eterno. Algo que nunca se revelasse ou que se revelasse de maneira faltante, parcial,  como no cinema, como no fim de um filme que deixa a dúvida na cabeça do espectador. Será que eles casaram? Será que foram felizes? A vida é mistério e somente os tolos que o preservam conseguem ser felizes. Cientistas não são felizes. Detetives também não ficam felizes depois de  encontrarem a solução de um  mistério, procuram logo outro, e mais outro. O mistério existe como tentação, como motivo para existir, a perda do mistério é perda da inocência e da razão para viver com inocência.
        Quando a pequenina Antonieta Correia entrava no auditório da rádio e dizia " Ouvintes de casa, distinto auditório, bom diiia!  Vou cantar para vocês essa linda canção, de Dolores Duran, intitulada, Meu Mundo Caiu", ali estava o mistério, o glamour, o filme; mas quando Antonieta Correia era apenas a mulatinha de cabelos pixaim, transitando pela rua com seu nariz grosso, suas pernas finas, sua baixa estatura, ali não havia nenhum mistério, mas a pessoa comum, que sentia dores, cólicas, sofria, gripava, tossia, dava pum e adoecia. A vida é mistério, sem o qual a realidade não se sustenta.
        Hans sempre idealizou todas as formas que não conhecia materialmente, como todo mundo deve fazer. Imaginava que um ladrão fosse alguém de cara enorme, redonda, cara de lua, com a boca grande, cheia de dentes, tipo os ladrões dos desenhos de quadrinho de Walt Disney. Na primeira vez que viu um ladrão real, magro, baixo, mulato, demasiadamente humano, se decepcionou. Nesse mesmo dia se decepcionou também com a polícia, que já conhecia, pois viu um detetive conversando com um ladrão como se fossem amigos. Como pode? A substituição do imaginário pelo real é o grande drama na psique humana. Nem sempre o real vale a pena.
        Após saírem da casa do homossexual, os garotos, era um grupo de quatro, se dirigiram à casa de Maria do Rosário,  que ficava devidamente guarnecida por um leão de chácara. Foram todos  entrando em fila, espiando cada coisa, cada canto, cada momento, a decoração, a iluminação, as meninas. Tudo para Hans parecia novo, mas não conseguia sentir emoção em nada do que via, não entrou no clima, era tudo muito artificial, todo mundo fingia, só Hans não sabia fingir, ainda, acho que nunca aprendeu. Hamilton foi logo agarrando uma garota da casa; aparentemente bonita e muito mais velha do que ele, embora fossem da mesma altura,  tinha  cabelos azul-castanhos e era afetadíssima; foi beijando-a pelo pescoço, passando as mãos pelos seios, enquanto ela fingia que se derretia e que ele era o macho que ela precisava no momento. Incitou Hans que fizesse o mesmo. Hans no entanto ficava entre a realidade e o sonho que não conseguia captar como nas telas do cinema com trilha musical e muito romantismo. Como iria abraçar e beijar uma mulher que não conhecia, que via como vulto na penumbra, que não usava Fleur de Rocaille, que já era adulta e com quem nunca conversara antes; fora que passava de mão em mão e não era de ninguém.  Lembrou-se que de uma certa estivera, por motivo de força maior, numa casa semelhante a esta, embora muito inferior em qualidade, em um outro interior que não aquele, junto com um  amigo seu, pela manhã, e as meninas estavam todas derrubadas no sofá, ressentindo-se da noite não dormida e curtindo a ressaca do arrependimento. Ou de quando, numa micareta, entrara com um primo mais velho numa outra casa bem mais deprimente, apesar do clima de carnaval, e imaginou se seria isso que o esperava no futuro, pois não era isso que desejava. Definitivamente, prostitutas não eram seu ideal de mulher.
         "Você não pode começar sua vida com um ideal ruim", pensou, "ou senão seu sonho estará perdido", "mas também você não pode fugir do real disponível, simplesmente porque não achou um imaginário à altura, e permanecer insatisfeito para o resto da vida", completou sem pensar nem dizer. Esse é o balanço da vida, sempre pendendo para o ruim na relação de troca.
         - Chega aqui benzinho, vem cá me dar um beijo, me fazer uma carinho, disse a prostituta para um Hans acanhando, que se limitava a olhar desconfiado para o ambiente.
         - Mas você não é a Brigitte Bardot, disse Hans para a moça.
         - Que chique! E você é o Giuliano Gemma?
         - Sou sim, e tirando uma moeda do bolso disse para a moça, olha aqui o dólar furado.
         -  Humm! Pois saiba que eu também sou a Claudia Cardinale.
        -  Desejo também mata! disse para ela Hans enquanto se dirigia à porta de saída.

sexta-feira, 7 de setembro de 2012

As Almas No Quarador - Parte VII - As Almas No Quarador



                                                  
                                           Parte VII - As Almas No Quarador
                  

          "Por que determinados espíritos, íncubos, não obedecem ordens verbais e temos de agir com autoridade para expulsá-los? Um outro dia, um deles se postou aqui na sala e eu ordenei que se retirasse. "Saia, saia, eu ordeno que saia, eu disse". Ficou fazendo pouco e rindo da minha cara. Resolvi então orar alguns Padres Nossos para ver se ele se retirava, mas não obedeceu. A reza não era suficiente para esse tipo de espírito. Lembrei então do que li em Swami Vivekananda e outros autores indianos - era versado em literatura mística indiana - e peguei uma vassoura para lhe dar uma surra. Bastou eu agir com violência e saiu desembestado pelo corredor e não mais voltou. São espíritos baixos que só entendem a linguagem da violência física. Você não pode tratar bem a quem não entende o que é bom."
          "Isso tudo depende muito do plano em que estão. Quantas vezes desencarnaram. Se ainda acham que não morreram. Se estão expiando algum erro cometido aqui na Terra, etc."
          "Leio aqui na palma da sua mão que a senhora vai morrer aos cinquenta e nove anos, não vai completar sessenta". Nada assustador para quem ainda não chegava nem aos vinte anos de idade. Afinal, faltava tanto tempo para comprovação daquela profecia quiromântica, que até mesmo podia cair no esquecimento de quem agendou sua morte.
          Quase toda a noite, quando não ia ao centro espírita, Dona Lindaura se reunião com os amigos para uma sessão espírita. A luz era pouca, muito silêncio, muita oração, até que alguém começava a falar com a voz alterada. Era o médium incorporador. Dona Lindaura,  médium sensitiva, apenas dirigia a sessão.
           A casa exalava espíritos em cada canto e por todos os lados. A própria Lindaura era um espírito ambulante. Vegetariana, de hábitos simples e sem vaidades, costumava colocar um copo com água em cima de um rádio da marca Mullard, enquanto ouvia em ondas curtas o programa de Alziro Zarur. Ao final do programa bebia a água espiritualizada e cheia de bolhas. Tinha-a como água benta.
          Um certo dia, sem quê nem pra quê, chegou um moço moreno, de estatura mediana, misterioso, fala mansa, baixa, monocórdica, sobrancelhas grossas, de pouca bagagem, chamado Kel; trazia um pedido de algum outro centro espírita, de alguma outra cidade, em algum outro lugar, para que Dona Lindaura o hospedasse em sua casa enquanto conhecia a comunidade local de irmãos. Sem qualquer problema ou indagação o hospedou em um quarto que normalmente era reservado aos hóspedes. O rapaz não se fazia sentir, entrava e saia furtivo e era de pouca palavras, embora muito simpático e cativante. Fez amizade com todo o grupo espírita e um dia, repentinamente, deixou a cidade sem se despedir de ninguém. Escafedeu-se.  Depois se ficou sabendo que tomou dinheiro emprestado de muitos irmãos do centro e fugira sem pagar nada a ninguém. Devia ser um íncubo. Devia.
          - Sabe, dona formiguinha. Disseram que Kel era um espírito, desses brincalhões, que chega para pregar peças. Tem espírito de todo tipo, continuava Hans para a formiguinha que seguia seu trajeto todo ouvidos. Ele olhava para mim e dizia: "Você é médium!" Não quero me imaginar sendo tomado por um espírito e nem  vendo um de cara a cara comigo, acho que morro na hora, de susto. Eu sinto uma insegurança enorme com essa estória toda de espíritos e com a maneira diferenciada que Deus trata cada um deles. Uns ficam rondando. Outros ficam numa boa. Uns acham que ainda não morreram.  Pô, eu preferia não ter espírito. Preferia que não tivesse céu. Preferia que a gente nunca morresse. Preferia que tudo fosse eterno.
         De repente, um profundo odor de perfume de rosas invadiu as narinas de Alcina, filha de Dona Lindaura.
         - Mãe, tá sentindo esse cheiro intenso de rosas aqui na sala?
         - Estou, disse Dona Lindaura na maior serenidade; é Sheila, um espírito de Luz, quando ela chega espalha esse cheiro intenso de rosas no ambiente.
         -  Estou arrepiada, disse Alcina, que maravilha, um espírito perfumado.
         -  Eu estava rezando para ela, falou Dona Lindaura, você terá boas notícias sobre seu emprego.
         - Ai, mãe, tomara!
         - Tenha fé.
         Dias depois chegou um telegrama com boas notícias para Alcina, mas Sheila já tinha quebrado a surpresa, era só a confirmação do emprego dela.
         Um espírito começou a falar através do seu veículo no centro espírita Jesus Nazareno.
         - Irmãos, um de vocês vai desencarnar ainda esse ano. Não posso dizer quem é, pois não tenho permissão para isso.
         Desconfiança e desconforto totais entres os cerca de cem presentes à sessão naquela noite. Todo mundo se olhava se perguntando o óbvio: "Vai ser eu?"
         Então se levanta Dona Lindaura, pra lá de tranquila, e tranquiliza a todos.
         - Caros irmãos presentes, fiquem tranquilos, a vez é a minha. Fui avisada por uma cigana, quando ainda não tinha vinte anos, que eu ia morrer aos cinquenta e nove anos. É a minha vez de desencarnar. Vai ser este ano. Eu sei. Eu sinto.
         Todos ficaram aliviados, embora ainda temerosos, quem ia confiar no que dissera uma cigana quarenta e nove anos atrás? Ciganas mentem tanto.
          O guia do centro pediu a todos que se acalmassem, pois fosse quem fosse seria a vontade de Deus e nada haveria para se fazer além de aguardar.  
          O dia seguinte à comunicação, mesmo se desconfiando do poder da cigana, foi de clima de velório na casa de Dona Lindaura. Todo mundo já a olhava como morta, mas a data certa do calendário ninguém sabia, nem Lindaura ia se antecipar ao que deveria ocorrer de modo natural, conforme o chamado. Nesse métier, leia metiê, muitos são os chamados e pouquíssimos os escolhidos.
         - Vem cá gajão, falou uma cigana, deixa eu ler tua mão, uma moeda não é tua vida.
        - Sai pra lá cigana, eu não quero saber o dia que eu vou morrer.
        - Mas eu posso te dizer se tu vais ser rico, se vais ter muitos filhos e uma mulher muito bonita...
        - Sabe, dona Cigana, eu prefiro a surpresa, mas toma aqui sua moedinha...
        -Tá na cara que vais ser um lindo gajo e muito rico... Deus te abençoe.
        - Sabe, dona formiguinha, eu não aguento mais tanta insegurança, preferia não ter nascido. Primeiro me levaram uma irmã sem eu nem saber que a gente morria. Depois foi o Papa que morreu e o céu escureceu e o mundo ameaçou se acabar. Logo em seguida, fiquei sabendo que a minha mãe, o meu pai, a minha vó e até eu também vou morrer! Isso é vida? Se é para morrer por que se nasce então? Na escola eu fico fazendo caligrafia para escrever torto por  linhas certas, quando Deus, sem nunca ter praticado caligrafia, escreve certo por linhas tortas! A vantagem é que está chegando a hora de ver Brigite Bardot...
         Todo mundo morre, todo mundo nasce, mas se não está perto da gente quem nasce ou morre a gente não sente e o mundo vai fluindo, fluindo, pois somente nós somos capazes de aferir a nossa dor, o nosso prazer e a nossa aflição, ninguém mais. Quando a gente é jovem, acha que tem uma avenida para passar e passear; acha que tem tanto tempo, que o desperdiça. Aí adiamos. Adiamos. É hoje. Será amanhã. No ano que vem. Quem sabe daqui há cinco anos. É o desperdício de quem tem muito tempo potencial para viver. Mas não adianta, por mais que façamos e aproveitemos, nos sentiremos como se nada fizéssemos ou aproveitássemos, pois a insaciedade é perene e o passado não alimenta o presente.
         Dona Lindaura foi-se embora da cidade para passar um ano com um outro filho em uma outra cidade de um outro estado. Deixava a cidade, os parentes, os amigos do centro e toda uma expectativa de que morreria naquele ano.
        Uma certa noite de lua cheia, enquanto o vento balançava as palhas de uma pequeno canavial pequeno, prenunciando a chegada do lobisomem, podiam se ver várias almas estendidas no quarador sob a lua, já que almas não aparecem durante o dia, elas coram ou quaram sob a luz do luar estendidas como lençóis brancos. Nós vivenciamos apenas o momento e vamos compondo-o sob o nosso prisma interior, de tal forma que existe uma sintonia simpática entre  o que vemos e o que é visto, uma reciprocidade inteiramente unilateral, mas projetada e refletida do sujeito para o objeto e de novo para sujeito, de maneira reciprocante, numa objetivação clara do sujeito e numa subjetivação obscura do objeto. É como se você visse e estivesse sendo visto, vigiado pelo que vê, mesmo quando o que é visto é desanimado e desanimante. É como se você saísse do corpo e dialogasse consigo mesmo, mas tivesse de voltar e sair para responder e sair e voltar para perguntar.
          Hans foi dormir inquieto. Tinha ouvido a estória da mulher que batera na mãe e que virara um pássaro que gritava: cavala, cavala, cavala. Medonho!  Nesse hora tudo que você  quer é não se levantar, embora para o seu desgosto a sua bexiga teime em se encher rapidamente e  seu sono teime em não chegar. Cavala, cavala, cavala! repetia o pássaro preto da estória. O batuque de candomblé zoava nos seus ouvidos, atabaque por atabaque, na baixa frequência dos sons surdos,  assim como o ranger das rodas do carro de bois do ladrão fantasma que costumava perambular pela cidade de maneira aleatória. De súbito, sentiu que alguém puxou sua camisa deixada sobre a cabeceira da cama patente de solteiro de quando foi dormir.  Abaixou para pegá-la e viu seus sapatos balançando, sem que ninguém os tocasse. Correu. Acendeu a luz. Fantasmas não gostam de luz, essa é a vantagem, boêmios também não. Dormiu, muitas horas depois, pelas mãos do cansaço.
          No dia seguinte lhe deram a notícia que a Dona Lindaura tinha morrido tal e qual a cigana e o médium incorporado do centro previra, mas sem dizer quem seria.
          - Eu sabia, disse Hans, eu vi minha vó quarando com as almas sob a lua cheia. Era ela sim. Estava lá toda branca, feito um lençol.
         - Que estória é essa menino? Quem já viu quarador de almas?
         - Deixem pra lá, se não consigo que os vivos acreditem em mim então só me resta falar com os mortos.
         - Eu, hein! Mais um ficando louco nessa casa!
          À noite, no centro espírita frequentado por Dona Lindaura, o presidente do centro começou a preleção dizendo que tinha duas notícias para dar aos presentes, uma boa e a outra ruim. Qual preferiam primeiro?
          A ruim, primeiro, foi a opinião unânime.
         - Bom; a ruim, que não chega a ser  tão ruim assim, a não ser pela condição trágica sob a qual se deu, é a que a nossa irmã Lindaura já não está entre nós; desencarnou ontem, cumpriu sua missão, é um espírito de luz agora e vai cuidar da gente.
         Um Ohhhhhhhhhhhh... de alívio e de espanto se ouviu ecoar.
         - Vamos então a boa notícia. O nosso centro recebeu hoje essa encomenda dos Correios. Vem de parte daquele rapaz que esteve entre nós durante algum tempo, o Kel. Nessa encomenda ele manda devolver todo o dinheiro que tomou emprestado a alguns de vocês e manda dizer também que cumpriu toda sua missão aqui entre nós. Que gosta de fazer esse tipo de  brincadeira. Que é mágico! Que seu nome é Kel Keljestrand.
     

quinta-feira, 6 de setembro de 2012

As Almas No Quarador - Parte VI - Bonequinha



                                                         As Almas No Quarador
                                                          Parte VI - Bonequinha

         Por todo lugar onde se anda vê-se a devastação. Morros são destruídos ou sulcados pelo tempo e as intempéries. Monumentos são desfigurados por limo, fuligem, depredação humana e outros agentes... O ferro oxida em ferrugem. O alumínio em óxido de alumínio. O plástico esfarela sob o sol e reduz-se a partículas minúsculas. As plantas sofrem com o excesso ou a falta dos raios solares, com geadas, seca, fungos,  bactérias, lagartas, vírus e outros tipos de pragas... As marés vão sulcando os rochedos, invadindo as praias, espalhando o nocivo salitre que detona carros, geladeiras, fachadas. Edifícios envelhecem pouco tempo depois de construídos. O concreto também adoece nas pontes, estádios e grandes construções. O mundo segue uma marcha inexorável para a destruição daquilo que não é original; tudo tem prazo de validade que vai na idade certa de morrer. Isso é verdadeiro caos antropológico, demasiadamente humano, ainda que seja o curso natural da natureza, sua transformação e decomposição à porção mais estéril e inanimada das coisas. Seria preciso existir algo que se autorregenerasse indefinidamente, que voltasse a condição ab original, como parece poder ocorrer em certos seres muito particulares desde que o ambiente lhes seja propício, embora saibamos que nem sempre será. Sabemos que o tempo existe, não para nos envelhecer, como acreditamos, mas para dar uma direção vetorial ao espaço, irretrocedível, até que se extinga com esse próprio espaço. Na nossa vida temos vários inimigos, entre eles o espelho e a fotografia, mormente a última, que vai documentando nossa transformação ao longo dos anos, sempre para piro. A existência é um V invertido, você sobe, sobe, chega ao topo, depois vai caindo, caindo, até a extremidade oposta do V,  mas como esse V não é um triângulo fechado, não se volta a subir novamente num eterno retorno, muito ao contrário, para-se aí. Muitos nem mesmo esse percurso fazem, morrem subindo, outros no topo, ainda outros na descida íngreme. Todas as maquiagens são possíveis para enganar o tempo, mas a vida não é um eterno teatro.
         A melhor imagem que você tem de uma pessoa é a melhor imagem. E qual é a melhor imagem? Aquela que lhe parecer melhor.
         Não cabe a ninguém ser o vigia do tempo, nem ao autor, pois nesse cenário todos atuam e são autuados.
         Hans achava Bonequinha linda, e era. Pele branca, sedosa, bochechas róseas, olhos vívidos, cabelos lisos, pretos, franja na medida, bundinha escassa, mas na medida, pernas nem grossas nem finas, com espaço de sobra para celulite que podia se instalar no futuro. O patrício adora um derrière, abstraindo nessa sua paixão os seus piores momentos excretores e sopradores, não importa, não é nesses momento que quer tê-lo, possuí-lo, mordê-lo.  Um dia Hans pode vê-lo guarnecido por uma calcinha branca de babados enquanto pulava corda. Nada para comemorar naquela visão parcial e encoberta, apenas para confirmar que também era perfeito e mostrava que o escondido também se alinhava com o que estava à vista. Quando a gente não vê defeitos no que olha à primeira vista é que não tem defeitos naquele momento, defeitos chegam sempre com o tempo. Num primeiro momento a gente vê, num segundo a gente percebe. A percepção é o ver com juízo de valor. Também, quando se vê com os olhos do coração, se está sempre de acordo, acorde, com o coração nivelado,  e Bonequinha estava na primeira perna do V invertido, estava em ascensão, nem tinha chegado ao topo, ainda.  Seus hormônios cada dia mais a ruborescia, davam-lhe graciosidade, mamões, melões, caramelos; frutas-pães,  frutas do conde, doces sortidos e alguns marmelos. Marmanjos não lhe faltavam, estavam todos no prelo. Elo não era ele, ela que era o elo. Deus, Elói.  
         Bonequinha preferia sempre os mais ricos, a melhor opção quando se tem um leque opções. O rico tem uma beleza que é ao mesmo tempo inerente e acrescida do charme da abastança. O pobre não. O pobre é feio, traz da pobreza o ranço que tira o viço e o charme do noviço. Bonequinha desfilava namorados. Estava na época de namorar mesmo, e muito, muitão, a época do futebol, da bolinação, do chute na trave. Aquela época em que você precisa tocar e ser tocado. Trocar e ser trocado, mas não ser moeda de troca, nem ser apenas troco. Hans só a desejava, numa forma de desejo que era mais admiração do que sexo; sabia, no entanto,  que não era páreo para os concorrentes, tanto pela pouca idade que tinha como pela posse que não tinha, embora dotes se prenunciassem à quem soubesse adivinhá-los. Limitava-se então a admirá-la, a perder a voz, a sentir o calor da sua presença. Se ela percebia isso, Hans nunca teve a certeza; achava que não, mas não se incomodava com isso, funcionava apenas como um padrão modelar de futuras escolhas, certas ou incertas, como incerta vez.
        Aconteceu então de Hans achar uma fã, no ginásio, mas não era de seu gosto; fingia que não estava sendo secado o tempo todo, embora isso o incomodasse e muito, ter uma espiã a seu encalce, ter de desviar o olhar quando a olhava. Mulher quando quer persegue, é uma praga que não fica na Checoslováquia  Desconversava quando alguém tocava no assunto, entediava-o,  não gostava do nariz da menina, um tanto grosso e de pomboca, cujo etimológico deve vir da semelhança ao bico do pombo. Além disso, Hans prezava mais um amor platônico do que assumir que namorava tão jovem. Não tinha vocação para Romeu.  Na verdade, tinha uma certa vergonha de dizer que estava namorando, pois isso pressupunha uma atividade sexual nascente a curiosos, o que deveria manter oculto.  Ouvia o descrever das transas de um amigo mais velho, que lhe contava o que fazia com as namoradas, como transava com o suspiro tapado e outras variantes ainda não praticadas. Também presenciava o brotar da sexualidade de amigos da mesma idade, a curiosidade pelo sexo oposto e até por homossexuais. Vale tudo quando o sexo chega, se não se consegue canalizá-lo convencionalmente ele assume qualquer outra direção. A sociedade não reservou um rito iniciatório para o garoto que está virando homem, ninguém fazia ou faz festa de 15 anos para garotos.  Garotos se viravam àquele tempo e até sexo com animais praticavam.  Livrar-se da figura da mãe é relativamente fácil, substituí-la integralmente,  muito mais difícil. A transa é o transe que os garotos não vão conhecer nas suas primeiras decepções iniciáticas, talvez por isso, decepcionados, muitos prefiram a droga.
         Bonequinha desfilava namorados e mais namorados, frescores e mais frescores, ardores e mais ardores,  já estava mocinha. O que ela fazia Hans não sabia, mas havia exemplos de garotas da sua idade que estavam grávidas, até mesmo casadas na igreja verde, no mato, praia de Oxóssi.
         Nunca aconteceu, com Bonequinha nunca aconteceu. Eva podia ser a substituta de Bonequinha, tinha muitos dos seus atributos, embora fosse mais rude, mais decidida, mais fugaz. Mas o que é o acontecer quando o incompleto é mais satisfatório do que o completo?
        O tempo vai passando e as pessoas vão se afastando, vão migrando, se agrupando, procurando seus rumos. Ninguém pode ficar com o pé no passado nem viver de reminiscências. Só o escritor.
         Hans foi crescendo e não cresceu gostando de tudo que viu. Quando queria não podia, quando podia não queria. Havia sempre um desacordo entre o querer e o poder no tempo e no espaço. Quando não se tem poder se renuncia ao querer pelo aceito. O aceitar é uma forma de querer sem  uma segunda opção, uma submissão à nossa própria irrelevância. Nos milhares de casais que via formando pares, Hans entendia que ali havia apenas a aceitação passiva do possível, longe do desejável. É como se pegar um ônibus cheio para se ir para casa porque se tem a certeza que um vazio não chegará tão cedo ou nem chegará.  Mas chega uma hora que a vontade é tão forte que até o inaceitável é palatável; é a redução do sujeito ao objeto, a totemização substituta.  Aí vale tudo. Se dá então a submissão da cabeça e da concepção estética apriorística pela satisfação imediata do desejo. A comunhão do possível como o desejável.
          E por onde andava Bonequinha? Hans não sabia. Não mais tinha tido notícias dela. Não sabia se casou, se teve filhos, se era feliz ou infeliz. Sua cabeça também tinha mudado e um certo conformismo com a aceitação do feio ou do mais ou menos foi se formando na sua escolha. É a época em que descobrimos que não somos reis, não somos importantes, estamos aqui para engolir a ração que nos é oferecida. Outras Bonequinhas desfilaram diante seus olhos, inclusive uma morena linda, que usava um óculos fundo de garrafa, namorava um rapaz mais velho e rico, era colega de sala e não tirava os olhos dele. De novo um amor improvável. Deletou. Muito mais tarde a encontrou um pouco menos bonita, embora ainda muito bonita, completamente pirada, excitada, depressiva, namorando a um amigo; não afligiu mais seu coração. Vitória. Era a cura da dependência a modelos do passado. A transposição de um modelo estético por opções variadas e menos limitadas que o presente oferecia.
         Tudo que era enorme na sua infância; as ruas, as casas, as praças, as pessoas se tornaram pequenas. O encontro do passado com o futuro no presente traz uma decepção de dimensionalidade e de perspectiva. É a constatação de que a água do rio correu, desaguou no mar, sumiu; nem você é você mesmo nem o outro é mais você. Ninguém se vê no passado olhando o presente, as emoções evoluem ou pelo menos se transformam.
        Um certo dia, sem que esperasse, Hans se deparou com uma moça que o reconheceu e a quem não reconhecera.
        - Hans, que incrível, você está o mesmo, não mudou nada, menino, quer dizer: mudou para melhor, rapaz! Aposto que está cheio de namorada...
        Hans achou aquele rosto familiar e deu uma busca associativa no seu banco de fisionomias. Sim, era ela. Ela, Bonequinha! em carne e osso. "Mas como pode?" "Como pode, meu Deus?!" E aí, enquanto falava com ela, meio que triste e decepcionado, lembrou como as casas envelhecem, as madeiras apodrecem no tempo, a chuvas solapam as paisagens, o tempo solapou Bonequinha e suas emoções.
         Hans não acreditou no que viu. Como fora possível a alguém que foi tão bonita ficar tão envelhecida, feia, caquética, quando pela lei da normalidade um certo tipo de viço e atração ainda devia reter? Estava quase na casa dos quarenta mas aparentava ter uns sessenta descuidados. "Ufa!, escapei dessa." disse. Somente depois soube da tragédia que tinha se abatido sobre sua vida; de alguém desejada para alguém rejeitada, de alguém bonita para uma bruxa, de uma jovem promissora para uma velha sem perspectiva.
         Quando chegou em casa colocou uma dose dupla de uísque com gelo e ficou rememorando de quando Bonequinha era bonita, linda, tinha frescor e era desejada por todos. Pensou em escrever um ensaio sobre a feiura ou a decadência, mas não tinha talento para escritor. Se olhou no espelho e viu que não era o mesmo. Comparou suas fotos e viu que também tinha ficado pior. "Vivemos presencialmente nossa decadência", pensou, "a nossos olhos e aos olhos dos outros", completou em voz baixa. Chegou à varanda, deu uma respirada profunda, engoliu um gole do uísque, se arrepiou e disse:
        "Tirei na loteria apenas por não ter acertado!"